Meio de semana, sem opções para sobreviver, o gordo se sentava em uma mesa de escritório, sentindo dor nas costas e tendo que atender velhas chatas. Isso era o seu trabalho, como o de muita gente que trabalha em bancos, lojas, lanchonetes, estabelecimentos de saude, de lazer, de prazer. As vezes ele tinha que realizar o atendimento em pé, para ele aquilo era uma tortura quase pior, do que ter o conforto da sua almofadinha de rosquinha negada. Barrigudo, com uma hérnia, de cabelos brancos, mas careca, com certeza uma figura estranha, comum. Não era de todo gordo na verdade, muito menos preguiçoso, teve de trabalhar muito a vida inteira, inclusive achava que o trabalho era um forma de Deus o punir. Certa vez teve de vender fraldas, no passado vendia verduras de porta em porta e até mesmo dentaduras, e qualquer profissão pode ser chata e cansativa. Rogério era fiel a Deus, ia na igreja todo domingo, mas a dor da hérnia, somado as velhas babentas, só podia ser punição. E ele sabia o porque. Ele era Deus e fazia aquilo pra punir a si mesmo, mesmo sem ser intencional.
A verdade é que de vez em quando, a mente cansada do velho trabalhador, parecia escorregar para outro lugar e isso só acontecia por que ele era muito próximo de Deus. Ainda não havia entendido isso muito bem, mas de vez em quando ele parecia estar chegando quase no inferno do seu cotidiano, trocava de corpo com outra consciencia que costumava ser melhor que a própria realidade, o que nem sempre era verdade, mas com certeza ele era um escolhido. Enquanto isso Deus, ou outro Deus, ou talvez um Deus pagão, ficava no seu corpo, sofrendo, como ele sofria. Era relativamente justo, apesar de muito esporádico. Para sua sorte, no momento que sua dor parecia lhe chegar na alma... PLUFT!
Estava no corpo de Deus, ou de qualquer outra pessoa, em uma situação completamente aleatória, as vezes graciosa, as vezes insatisfatória, mas geralmente divertida. E no fundo, mesmo ranzinza em quintas chuvosas e doloridas, ou cafona nas sextas ensolaradas, Rogério era divertido. Quando saltava de corpo, recebia as memórias de Deus e sabia o que estava acontecendo. Como se fosse um instantâneo update de informações no seu facebook. Era carnaval, tava rolando uma festa num apartamento, tinha poucas luzes e parecia estar chovendo no local.
Deus parecia poder fazer coisas absurdas acontecerem, talvez aquilo fosse só coincidência, ou efeitos especiais, mas quando ele assumia a direção não conseguia fazer nada, o que não impedia que coisas bizarras acontecessem. Havia muitas pessoas fantasiadas, andando, conversando, dançando ou transando pela casa, mas ele não parecia estar muito no clima, todo molhado, com uma camisa roxa aberta, mas enrolado numa coberta com desenhos de tigres ao luar, como se tivesse escondido, ou achando que usava uma capa de invisibilidade. Olhou para os lados meio perdido e percebeu que o lugar parecia mesmo uma algazarra.
Na sala parecia que alguém dava um show de sexo em um dos sofás, mas ele viu pouco, estava escuro, nem era pra ver, não podia, isso é pecado. Na sala do lado um policial dava batida num E.T., num Elvis Presley, no Cris Brown e em dois elfos. Da porta de um quarto viu o Papa Bento XVI, o Michael Jackson e o Arcanjo Rafael saírem, acompanhados de alguns coroinhas.
Ele estava paralisado, segurando um copo de água, na cozinha, onde nada de estranho parecia acontecer, quando um Urso entrou caminhando pela porta e caminhou até a geladeira, onde começou a remexer até tirar uma latinha de cerveja e jogar ela inteira na boca, mastigando tudo.
Deus ficou pasmo, observando boquiaberto toda aquela selvageria na sua frente, quando a besta o encarou nos olhos. Sua alma congelou e naquele momento Rogério desejou não estar na pele de Deus. O animal esboçou um sorriso e falou:
- E aí Deus, você por aqui!
Sem reação diante do urso falante, não percebeu o cara cabeludo fantasiado parar do lado dele.
- Pô meu, o DJ se enforco na árvore lá fora, acabou com o clima do Luau - disse o Galo, com seu jeitão hippie. - Daí a galera pensou que ele tava morto e nem deu bola, mas o maluco voltou de novo a vida e ficou se debatendo gritando maconha.
- TSUKE! - comemorou o urso em japonês. - Vai rolar um baseado?
- Pô, eu to tentando acender um - retrucou o galináceo hiponga. - Mas tá díficil com essa chuva. Como é que chove no nono andar né cara?
- Loucura isso cara, mas acho que eu consigo resolver isso. - se aproximou do baseado, bateu palmas de uma forma estranha e disse - Katon No Jutsu!
Uma bola de fogo saiu de sua boca e queimou o baseado pela metade, mas acendeu na chuva. O Coringa testemunhou essa façanha e chegou repreendendo o Urso:
- O mano, cuidado aí pra não queimar meus pezinhos ali no canto, essas 3 plantas vão me render uma tonelada de maconha.
- Foi mal. - disse o Urso que deu uma baforada.
- E se aquele porco ali encher o saco? - O galo apontou pro policial na sala do lado. - Tão forte e tão perto.
- Nossa - disse o Coringa apreensivo. - Nem tinha visto, tava entretido com a Arlequina vendo um anjo meter no sofá. Pode botar fogo aí ô, dragão, vamos carburar o flagrante.
- Beleza - concordou o Urso, que soprou a fumaça do baseado nas plantas e elas pegaram fogo. Mesmo com chuva elas queimaram e eram capaz de deixar todo mundo no prédio chapados. Rogério estava horrorizado com aquilo, a única justificativa só podia ser o carnaval. Já tinha vivenciado situações improváveis, mas aquilo ali parecia estar tomando péssimas proporções. O urso olhou pra ele e falou: - Tá quietinho hoje Deus, quer dar uma bola?
Foi então que os seus pensamentos pareceram se tornar audíveis, numa voz louca feminina que gritava alto:
- VAMOS PRO INFERNO!!!
Ele olhou pro lado e viu que na verdade não eram seus pensamentos e sim uma mulher maluca vestida de palhaça que corria pela festa.
- VAMOS PRO INFERNOOO!!!
Ela passou por ele correndo e estacou de repente em frente a um simbolo desenhado numa parede. Todos prestavam atenção na maluca que continua berrando.
- VAMOS PARA O INFERNOOO!!!
Passou então a repetir muitas vezes isso e bater na parede, até que quase todo mundo ao seu redor ovacionava loucamente, gritando e pulando no chão. De repente a voz da palhaça engrossou e todo mundo silenciou. Ela mordeu a ponta do dedo e desenhou algo na parede com sangue. O Rogério já tava achando que a brincadeira tava ficando muito pesada. Um cara fantasiado de viking apareceu com uma cruz, do meio do povo, mijou em cima dela e depois tacou fogo. Ninguém sequer esboçava uma reação, então a Arlequina terminou seu desenho e entoou em voz firme:
- Ecclesiam suam ædificavit supra firmam petram!
Nesse instante Rogério voltou a sua vida, a sua dor nas costas, ao seu inferno, mas estava aliviado e se perguntando se Deus não era completamente maluco.